Succession e as nossas heranças malditas

Diogo Mendonça
4 min readSep 28, 2021

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Tem SPOILERS .

“Pai e mãe sempre ferram você.
Não é de propósito, mas é o que acontece.
Eles passam pra você os erros deles e ainda acrescentam outros.”

Essa frase é dita por um personagem pontual no sétimo episódio da primeira temporada e, se já não fosse claro o suficiente, estabelece bem que a Sucessão do título tem menos a ver em descobrirmos qual filho será o CEO da Waystar Royco depois que o velho Logan morrer e mais, muito mais, a ver com as heranças psicológicas que a prole vai carregar e perpetuar.

Kendall, Siobhan, Roman e Connor são filhos de um dos homens mais poderosos do planeta, com acesso a todos os recursos possíveis e que poderiam ter sucesso em qualquer empreitada. Poderiam, inclusive, buscar ajuda para se libertarem da sombra e dos abusos do patriarca. A verdade é que todos ainda são meras crianças buscando a aprovação do pai em todas as suas ações.

Claro que acompanhar as intrigas de uma família bilionária e completamente deslocada da realidade é parte da diversão. Uma espiada em um mundo de luxo que não temos acesso. O jogo de poder entre as instituições e o Estado, as tensões de uma negociação ou votação de conselho que podem mudar toda uma empresa.

Mas isso só se mantém de pé porque as bases são focadas em um dos pilares da nossa sociedade. É sobre aceitação e validação, o poder é só uma ferramenta pra isso.

A abertura funciona como um prólogo de todos os problemas. As crianças sempre em busca do olhar e do afeto do pai, que raramente aparece por inteiro e quase sempre está em movimento. São os pequenos com a câmera na mão caçando a presença do pai, fazendo um registro quase que de paparazzi da pessoa que lhes deveria ser a mais acessível. A mãe não é esquecida, mas ela é tão distante do marido, e dos filhos, quanto as crianças são do pai.

São herdeiros de uma família que não demonstra afeto. Não por menos, o único parente que rompe as barreiras do toque como algo positivo é o Greg, que é primo. Para as “crianças” só resta fazer algo de bom e, com sorte, receber um braço no ombro com um “bom trabalho”.

Quando Kendall abraça Shiv, já no final do quarto episódio da segunda temporada, sem poder contar a ela o que tinha lhe acontecido no casamento da irmã, nós ficamos ressentidos com a situação. Um raro gesto de acolhimento dentro de uma família que cresceu aprendendo que afeto, medo e o simples ato de ouvir são uma fraqueza.

E Shiv, talvez por ser a única filha mulher, é a que consegue ter alguma independência. Ela entende tão bem o que acontece que usa do mesmo mecanismo pra manipular a testemunha no caso dos cruzeiros. Ela termina a conversa com um “pense no que é melhor pra você”, olha para o parquinho onde o filho da testemunha brinca e volta o olhar para a mulher. E fica aqui um ponto de coragem para a série por não mastigar o ato pro espectador, não mostrando a criança brincando para fechar a cena.

Assim como nas duas versões da abertura, a figura de Caroline, a mãe, aparece de forma cirúrgica ao longo das duas temporadas. Uma mulher tão fria quanto o ex-marido, que não faz questão alguma de evitar comentários ácidos ou depreciativos e que se esforça ao máximo pra não acolher qualquer emoção dos filhos.

O casamento de Logan e Caroline se tornou a referência para adultos que não são nada bem resolvidos em questões afetivas ou sexuais. Connor, que tem a desvantagem de ser o filho mais velho e ser de outro casamento, confunde amor com dinheiro. Kendall está sempre procurando uma mulher que agrade ao seu pai. Shiv assume um casamento mas não aceita afeto, a sua referência masculina é podre demais pra permitir qualquer traço de confiança.

Já Roman, o caçula, é o mais quebrado de todos. Roman só se excita quando humilhado ou subjugado. Ele é o “filho rebelde” porque os atos inconsequentes chamavam atenção dos pais e ouvir xingamentos se tornou a única forma de afeto recebida.

Tudo construído com muita calma e pouquíssima exposição, mas em nenhum momento de forma monótona. Uma fotografia espetacular, que usa película pra trazer textura aos ambientes. Não que o digital não seja capaz disso tecnicamente, mas as maiores tragédias familiares que conhecemos no entretenimento foram registradas em película, tem um viés subconsciente muito forte nessa escolha.

A câmera é sempre inquieta e não raramente os personagens estão fora de foco, especialmente nos momentos mais importantes. Aquele mundo é turvo e confuso. Talvez seja uma falsa impressão, mas sinto que a Shiv é a que mais tem momentos de desfoque, não sei se por ela ser uma outsider tentando cravar o pé naquele mundo masculino ou por ser a mais analítica e estrategista e não conseguir formar uma imagem nítida das situações. Na dúvida, diria que são as duas coisas.

A superfície durona e chique daquelas pessoas é um belo teto de vidro pra um mar de inseguranças e medos. E até mesmo o ato mais corajoso da série até então não foge da regra. Roy precisa de um matador para o seu lugar e Kendall vai para o tudo ou nada.

Parece emancipação, a escolha de fazer o que é moralmente certo, mas é mais uma tentativa de aceitação. Aquele sorrisinho quase invisível do velho Roy no apagar das luzes da segunda temporada mostra que, dessa vez, Kendall deixou seu pai orgulhoso. Agora ele tem um rival à altura.

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